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sexta-feira, 29 de julho de 2011

A velha do Café

Café  e Becos da vida.
Como a nossa relação com o cheiro das coisas tem raízes tão profundas. Há alguns dias almocei com o Paulo de Tarso e conversamos sobre sua paixão com o café, a qual eu também compartilho. Hoje eu li o texto postado no blog do Chico “Briga no Beco”, de Adélia Prado. Lembranças, cafés, becos, infância...
A velha do Café
Toda manhã era o mesmo ritual, minha tia Maria fazia o café. O aroma invadia toda a casa, o que não seria difícil, pois a casa era pequena e onde eu dormia com meus primos ficava perto da pequena cozinha. Aquele aroma enchia meus poros e minhas narinas, e eu me sentia invadido logo cedo como se não houvesse amanhecer sem o cheiro do café.  A casa de Tia Maria não tinha quintal e a janela da cozinha dava pra rua. Todos que passavam sentiam o cheiro do café fresquinho sendo feito ainda no coador de pano. Eu acordava ainda inebriado pelo cheiro e sabia que meu tio logo chegaria do trabalho com o pão, o leite e o jornal que minha tia lia todas as manhãs. Seriam manhãs comuns a várias outras manhãs em favelas do Rio de Janeiro em meados dos anos setenta não fosse uma personagem fantástica: A velha do café. Sempre ao passar do último filete de água quente no coador de pano, e o aroma se dissipar pelos becos, ela aparecia, a velha do café. Ela era alta, muito alta, porque eu tinha sempre que ficar olhando pra cima pra observá-la: alta, cabelos encaracolados, pele do rosto e mãos enrugados, mais parecia um maracujá murcho, lembrava minha tia nos seus últimos dias. A velha do café chegava calada, minha tia lhe servia um copo de café e ela bebia, sempre assoprando o copo, porque o café estava quente e a fumaça subia tornando seu rosto enigmático. Ainda hoje quando assopro o café lembro dela.  A velha do café não falava nada, e quando pronunciava algo parecia uma língua de outro lugar, de outro planeta. Com o tempo eu passei a entender a velha do café, seus gestos, seu idioma, sua forma de agradecer, o seu olhar embaixo das rugas marcadas pelo sofrimento, o quanto aquele ritual de tomar café todas as manhãs conosco lhe era raro, mesmo que do outro lado da janela. Raras vezes ela me olhava, mas sempre dirigia um olhar de carinho pra minha tia Maria, e aquela fumaça entre as duas me parecia algo fabuloso, como um mistério entre duas bruxas que se entendem por um olhar e um sorriso, algo que nós, pobres mortais, não compreendemos neste mundo, algo que existe entre o café e a solidariedade.
Um dia a velha do café não apareceu. Eu fiquei toda a manhã esperando. O cheiro do café naquele dia foi tão forte que permaneceu até a noite. Minha tia Maria ficou na janela olhando pro fundo do beco, não leu o jornal, não fez o almoço, ficou ali esperando sua companheira de cada manhã passar pra lhe servir o último café.
Nelson de Manguinhos

5 comentários:

  1. Muito legal, Nelson!

    Conheci figuras semelhantes - necessitados e solidários de toda sorte irmanados em suas dores e alegrias.

    A velha do café e a sua tia agora habitarão o meu imaginário! Tomo já a liberdade de tomá-las um dia como personagens em um conto, quem sabe?!

    Grato.

    Um abraço
    Abel

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  2. Nelson, querido amigo!

    Muitos detalhes de suas histórias me tocam de modo familiar, pois nossa infância humilde propiciou-nos vivências semelhantes. Lembro-me do amanhecer lá em casa, quando criança. Era muito parecido com o que você relata. Muitas dessas passagens nos são verdadeiramente especiais.

    Parabéns pelo belo relato que sua memória nos proporciona.

    Grande abraço!

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  3. Obrigado Amigos,
    Grandes pessoas ficam no imaginário da gente. Essas duas personagens fazem parte do meu imaginário e do imaginário de muita gente. Que bom que eu pude trazer um pouco delas pra voces. Agora elas fazem parte de voces de alguma forma. E por mais absurdo que pareça, me torna um pouco mais livre.
    abs
    Nelson

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  4. A Velha do Café se foi e agora você reencontrou O Chato do Café. :-)

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